Muitos
jovens de hoje nem mesmo chegaram a conhecer a velha máquina de
escrever.... Mas ela foi uma companheira
incansável de muita gente, inclusive eu.
No
tek-tek de suas teclas quantos desabafos, quantos trabalhos, quantos
sentimentos ela viu serem transbordados em textos, muitas vezes incompletos,
muitas vezes não publicados, tantas vezes molhados por lágrimas, e outras
tantas efervescentes de alegria e romantismo...
No
seu silêncio amigo e cúmplice, a velha máquina de escrever compartilhou do
parto de tantos versos... e deu à luz tantas poesias que o som de suas teclas sempre
nasceu como música aos ouvidos de quem a dedilhava, ávida por derramar sua
canção no papel inerte e imaculado.
Ghiaroni,
como ninguém, o descreveu em sua magistral poesia que hoje publico em homenagem
ao autor.
MÁQUINA DE
ESCREVER
- Giuseppe
Ghiaroni
Mãe, se eu morrer
de um repentino mal,
vende meus bens a
bem dos meus credores:
a fantasia de
festivas cores
que usei no
derradeiro Carnaval.
Vende esse rádio
que ganhei de prêmio
por um concurso
num jornal do povo,
e aquele terno
novo, ou quase novo,
com poucas manchas
de café boêmio.
Vende também meus
óculos antigos
que me davam uns
ares inocentes.
Já não precisarei
de duas lentes
para enxergar os
corações amigos.
Vende, além das
gravatas, do chapéu,
meus sapatos
rangentes. Sem ruído
é mais provável
que eu alcance o Céu
e logre penetrar
despercebido.
Vende meu dente de
ouro. O Paraíso
requer apenas a
expressão do olhar.
Já não precisarei
do meu sorriso
para um outro
sorriso me enganar.
Vende meus olhos a
um brechó qualquer
que os guarde numa
loja poeirenta,
reluzindo na sombra
pardacenta,
refletindo um
semblante de mulher.
Vende tudo, ao
findar a minha sorte,
libertando minha
alma pensativa
para ninguém
chorar a minha morte
sem realmente
desejar que eu viva.
Pode vender meu
próprio leito e roupa
para pagar àqueles
a quem devo.
Sim, vende tudo,
minha mãe, mas poupa
esta caduca
máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha
amiga de horas mortas,
de teclas bambas,
tique-taque incerto.
De ano em ano,
manda-a ao conserto
e unta de azeite
as suas peças tortas.
Vende todas as
grandes pequenezas
que eram meu
humílimo tesouro,
mas não! ainda que
ofereçam ouro,
não venda o meu
filtro de tristezas!
Quanta vez esta
máquina afugenta
meus fantasmas da
dúvida e do mal,
ela que é minha
rude ferramenta,
o meu doce
instrumento musical.
Bate rangendo,
numa espécie de asma,
mas cada vez que
bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer,
quem a levar consigo
há de levar
consigo o meu fantasma.
Pois será para ela
uma tortura
sentir nas bambas
teclas solitárias
um bando de dez
unhas usurárias
a datilografar uma
fatura.
Deixa-a morrer
também quando eu morrer;
deixa-a calar numa
quietude extrema,
à espera do meu
último poema
que as palavras
não dão para fazer.
Conserva-a, minha
mãe, no velho lar,
conservando os
meus íntimos instantes,
e, nas noites de
lua, não te espantes
quando as teclas
baterem devagar.
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